"Coisas de Lorena:Concessões"

Quem acompanha este blog ou minha página no Facebook sabe que eu escrevo uma coluna chamada "Coisas de Lorena".
Para quem não conhece,Lorena é minha filha,e é portadora da  síndrome genética Esclerose Tuberosa,que confere a quase 30% das pessoas atingidas por este quadro raro, alguma manifestação do autismo,e sua forma peculiar de enxergar a vida.
Nem tudo porém, é dor e caos.Há beleza mesmo aonde enxergamos angustia,e alegria aonde só percebemos tristeza..Pensando assim,passei a olhar o mundo sob o olhar de Lorena,e refletir sobre aquilo que é banal  e cômodo, agora com  espanto e transformação..Uma professora da faculdade, disse certa vez que o espanto é essencial.Nos espantamos quando percebemos que aquilo que julgamos conhecer não é real,e dessa forma,libertamos nosso pensamento das amarras do conhecido,do estruturado.Abrimos espaço para o Novo e a Mudança.
No ônibus,Lorena sentou na janela.Como de costume,levei um livro para ler;Pensei que logo ela estaria dormindo,mas não,não dessa vez.A ansiedade por fazer mais um exame,a deixou desperta... e faladeira.Fechei o livro e pus dentro da bolsa,não ia conseguir por a leitura em dia,pelo menos não nesse momento.
-Falta muito para eu ter um cavalo?
_Acho que não teremos espaço em casa para um cavalo,Lorena...
-Nem um pequeninho?Um filhote de cavalo...pônei?
-Pônei e cavalo são diferentes,Lorena...
Ela ignorou completamente.
-Um pônei pequenininho....
.......
De repente ela olhou pela janela e ficou olhando os cavalos e vacas pastando nas fazendas margeando a estrada.Antes que eu conseguisse tirar o livro da bolsa,ela disparou:
-Sabe que cavalo gosta de comer maçã?
Eu sabia.O que eu não imaginava era como ela sabia disso.
Uma passageira se colocou ao meu lado,no corredor do coletivo,espremida  e com visível dificuldade para permanecer em pé,por causa das duas bolsas que segurava com uma mão,e a tentativa de se manter equilibrada dentro do espaço mínimo disponível,no ônibus lotado, apesar de ser sábado,um pouco antes do almoço.
-Quer que eu segure sua bolsa?
-Sim,claro,obrigada.
....
-Porque você segurou a bolsa da moça,mãe?
-Porque ela assim consegue se segurar melhor.
-Porque?
-Porque ela pode se segurar com as mãos livres assim..Depois,vale como minha boa ação de hoje,né?
E você lobinha,já fez sua boa ação hoje?
....
Ela riu,mas emendou outra pergunta:
-Vai ter barulho no exame?
-Vai sim...depois você me conta dos barulhos,com o que eles se parecem.Tem barulho de gente batendo na porta ,de cavalos trotando...
A moça olha divertida,imaginando que exame teria barulhos assim.Resolvi explicar.
-Ela vai fazer Ressonância Magnética.Mas sem anestesia-não vou ter como pagar ,é muito caro-então ela vai ouvir um monte de barulhos que a máquina faz durante a realização do exame.E a gente está brincando de descobrir com que se parecem os barulhos...
A moça me olhou cúmplice.Não disse nada.
De repente,falou:
-Escolhe um arco para ela.
-O quê?
-Um arco para ela,pode escolher dentro da bolsa .
-Tem arco dentro da bolsa?!
Abri a bolsa que estava em meu colo e tinham mais de 50 arcos de cabelo,das mais variadas cores.
Os olhos da Lorena brilharam.
-Posso pegar um?
Ela pegou um rosa.
-Quanto custa?
-Nada.Estou dando para ela.
E a moça fez sua boa ação do dia.
-Ainda temos que andar mãe,estou cansada...
-Só vamos andar um pouquinho...Qual barulho você mais gosta de ouvir?dos cavalos trotando?
Falar em cavalos deixou ela muito feliz,e ela voltou a se concentrar nos barulhos...
Chegamos na clínica.O aspecto hospitalar fez com que ela passasse da menina doce e delicada para alguém assustado e arredio.
O médico falou para atendente:
-Pode deixar.Tudo bem.Não precisa fazer a punção por enquanto.
Quis saber se ia prejudicar o exame.
-Não.Ela ia ter que ficar puncionada mais tempo.Se precisar,na hora eu faço a punção , vai ser mais rápido e injeto o contraste .É melhor para ela.
-Você pode sentar nessa cadeira aqui,dentro da sala.
-Vou poder ficar com ela?Não vai interferir no exame a minha presença?
-Desde que você fique quieta e não fale,tudo bem.
Embora a poucos metros dela,vou tranquilizá-la
-Estou aqui.mas não vou poder falar com você,nem ficar do seu lado...mas vou estar aqui,não sairei daqui.
-Vou poder chorar,mãe?
....
-Se você chorar vai estragar o exame. Você consegue.Medo a gente tem,eu também tenho.Mas você é corajosa.Porque faz o que tem que ser feito apesar do medo....Depois,lembra dos barulhos. Quem sabe tem um barulho novo,que eu não conheço.Vamos descobrir?
Chegou a hora da punção.A Atendente a retira de dentro do tubo que ela estava minutos antes,e que estalava e fazia  os sons ensurdecedores.
-Ela está chorando.
Olho para ela,vermelha feito um tomate,fazendo força para não denunciar seu choro.Banhada em lágrimas.Sinto-me a mais cruel das criaturas.A médica pode ouvir o que se passa na sala pelo comunicador instalado na máquina.
Ouço a médica dizer ,pelo comunicador ,que não será preciso fazer a punção ,afinal.
-O que você quer comer?
-Batata frita.
Conto o dinheiro.Todo o pouco dinheiro.É isso.
No prato da Lorena,coloco batata frita ,arroz e feijão e o peito de frango que ela adora.
-Um pouquinho de cenoura?
-Tá.
....
-Mãe,posso não comer cenoura hoje?
O olhar cinzento dela alternava entre a esperança e a resignação.
Concessões.
Pego meu garfo e sem nada dizer nada,espeto uma por uma das cenouras do prato dela e ponho no meu prato.
-Quer mais batata frita?
(Texto de Michelle Paranhos)

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