O Preconceito Nosso de Cada Dia...

O preconceito nosso de cada dia...

Olá, sejam bem vindos ao nosso encontro semanal.

Conversaremos hoje sobre o preconceito em geral e em particular, no que ele interfere no nosso olhar para nossa criança especial ,e com a visão que ela tem de si mesma enquanto indivíduo capaz , único ,e dotado de características que a fazem interagir de forma peculiar com seus parentes e amigos.

Há pouco tempo atrás, eu presenciei um momento em que o preconceito ,de forma sutil, se revelou em minha presença, apesar dos meus esforços permanentes em combatê-lo. Afinal como paciente com necessidades especiais e com três filhos também especiais, cada um com sua particularidade, para minha família ser especial é algo esperado, normal. Como diz o matemático Albert Einstein: ”Tudo é relativo, nada é absoluto”. Aqui, ser especial é, antes de tudo, algo dentro dos padrões, e tudo aquilo considerado normal pelas demais pessoas é , para nós, formas estranhas de ser e agir

“Olha só como meu cabelo está lindo, castanho.”,

Essa frase despretensiosa e aparentemente inocente, esconde em si um preconceito sutil. Porque foi dita por uma menina loura, de grandes olhos azuis, com transtorno global do desenvolvimento. Minha filha Lorena, 8 anos.

Durante as inevitáveis brigas entre irmãos, um deles disse para ela, como xingamento ”sua loura burra”, um preconceito amplamente conhecido pela sociedade em geral, de que mulheres louras seriam, teoricamente burras também. O porquê desse preconceito?

Ninguém sabe a razão concreta sobre a origem desse preconceito. O que se sabe é que ele surgiu por volta da década de 50,no século xx, após a segunda Guerra Mundial, com filmes estrelados por mulheres : papéis fúteis, inocentes, com atrizes louras de corpos esculturais, interpretando personagens femininos que acreditavam em príncipes encantados ou se expressavam mal. Como a vida imita a arte, e vice-versa, rapidamente uma ideia associou -se à outra, e como as artistas eram mulheres lindas, exuberantes e rapidamente atingiam o estrelato, as demais artistas, ruivas e morenas procuraram fórmulas para clarear os fios, utilizando-se de peróxido, surgindo assim o termo de loura oxigenada.

O músico brasileiro Gabriel, ”O Pensador,”, criou um rap para discutir justamente esse tema, em sua música ”Loraburra”,que fez muito sucesso, e em suas primeiras estrofes, comenta que de fato, existe muita mulher morena, ruiva ou mesmo loura reforçando este esteriótipo feminino .

Pois bem. Voltando aos dias atuais, minha filha nasceu na primeira década do século XXI e, ainda assim, sofre como vítima deste preconceito tão antigo.

Por ter algumas características do espectro autista, ainda que atípico, ela costuma entender frases e situações em seu sentido literal. Por estar,pouco a pouco, adaptando-se a se relacionar com seus pares ,já que está inclusa na escola, convivendo assim com todo e qualquer tipo de ideias, opiniões e preconceitos, na sua forma literal de entendimento, interpretou a frase com sua compreensão peculiar :”se ela não fosse loura, então não seria burra!” Lógico? Bem, para ela fez sentido. E, assim, ela foi apresentada ao preconceito mais cruel: aquele que diz respeito à nossas características intrínsecas, e que não podemos mudar. Ainda que em sua imaginação agora, como faz de conta com suas bonecas, brincando de salão de beleza; ou ainda futuramente, em que ela opte por pintar seus fios originais, sua genética lhe confere a característica loura, e isso, não irá mudar, apenas sua manifestação externa.

Quando a mulher se descobre futura mãe, junto com a alegria de gerar um filho, surge também as angústias do desconhecido: são nove meses de expectativas, em que a mulher não consegue adaptar-se sem alguma apreensão às rápidas mudanças físicas ,diárias, em seu corpo, além de suas transformações psicológicas e emocionais. Muitos médicos, inclusive, afirmam que o corpo feminino só atinge a maturidade completa após a gestação, mostrando como esse momento é realmente importante e um marco na vida da mulher.

As dúvidas causam uma ansiedade em maior ou menor grau e, na tentativa de tranquilizar a gestante, os parentes e conhecidos costumam responder às inquietações, das mais simples às mais complexas, com uma frase genérica, mas muito reveladora ”Não importa como venha desde que venha com saúde”.

Assim, chegado o grande dia do parto, muitos pais de ‘primeira viagem”, e mesmo os avós, costumam desembrulhar o recém-nascido de sua manta, assim que lhes é entregue pela enfermeira, e confere as mãos e os pezinhos, para ver se os vinte dedinhos estão lá, em suas formas esperadas. E isso é mesmo quase uma tradição em todo o mundo.

Muito antes disso porém, principalmente em famílias com uma assistência médica eficiente, a mulher fez muitos exames de imagem e vários de sangue para certificar-se de que tudo está dentro do desejado com o desenvolvimento do feto. Alguns deles são a aminiocentese, e a Translucência Nucal.

A Amniocentese é feito entre a 15° e a 18° semana de gestação, e realizado através de uma agulha introduzida na barriga da gestante, sendo retirada uma quantidade de líquido amniótico do útero , que será examinado em laboratório para descobrir se o feto possui alguma alteração genética, especialmente a síndrome de Down, ou ainda o sexo do feto e se seus pulmões estão se desenvolvendo adequadamente. É um exame diagnóstico, quando outros exames demostraram alterações que justifiquem um exame invasivo, e com um risco mínimo, mas real, de causar danos ao feto.

A Translucência Nucal é feita através de uma ultrassonografia entre as 11° e as 13° semanas de gestação, que mede a quantidade de líquido na nuca do feto, e dependendo dessa medida, pode se ter uma maior certeza de que ele tem, ou não alguma alteração genética, como algumas síndromes. Não é um exame com 100% de eficácia, mas auxilia na busca de um diagnóstico precoce.

Esses e outros exames gestacionais são medidas importantes para tranquilizar a maioria das mães de que a gestação transcorre dentro do esperado, além de permitir tratamentos inclusive cirúrgicos, para o feto ainda em desenvolvimento, corrigindo anomalias se possível, ou prevenindo a equipe médica da intervenção necessária ainda na sala de parto, garantindo a sobrevida do bebê.

Porém, na natureza, nada é absoluto, lembram-se? Como eu mesma já tinha algumas alterações médicas, fiz o exame de Translucência Nucal em minha filha, com resultado normal ,isto é, negativo para síndromes genéticas!. E a surpresa é que, meses mais tarde ela seria diagnosticada com uma síndrome genética rara. Até então, eu mesma ainda não possuía um diagnóstico fechado em meu quadro, e somente através do nascimento e desenvolvimento dela, é que os médicos concluíram que era o caso de não apenas um, mas dois portadores da síndrome Esclerose Tuberosa em minha família, eu e Lorena.

Quando perguntei ao médico se achava necessário realizar a aminiocentese, ainda quando ela era gerada, ele apenas devolveu-me a pergunta: Para que você quer saber?

Até então não havia pensado nas consequências reais que o resultado de um simples exame traria para mim, caso o resultado fosse positivo.

Um livro maravilhoso sobre o relacionamento de uma menina com síndrome de Down e sua mãe, chama-se “O livro de Julieta”(autora Cristina Sánchez-Andrade.Tradução.Rodrigo Peixoto.1°edição,2012,editora Paralelas),em que a autora relata de forma pungente a descoberta do diagnóstico da filha: ”No princípio, a dor nos paralisa. A sensação é a mesma do medo, sentimos um vazio no estômago. Sentimos necessidade de nos comunicar, mas às vezes ficamos mudos. Um nó na garganta .Aguentamos e engolimos em seco. Os primeiros meses vão passando, depois os primeiros anos ,e resta a esperança de algo diferente, de que talvez possa ser alterado, que as coisas que são talvez não sejam”

...A esse sentimento ,tão bem descrito pela autora, chamamos negação: é aquele momento em que negamos o diagnóstico, fugimos dele, e de tudo aquilo que remete a possibilidade de termos que nos confrontar com a incerteza, com o medo, com a patologia, e com a necessidade de termos que, rapidamente, entendermos o que se passa e agirmos de acordo.

Porque esse bebê real que agora se apresenta a nós não é aquele sonhado , desejado, é um ser diferente, e munidos de todos os nossos preconceitos enraizados até então ,costumamos imaginar de que ele será capaz de poucas realizações, ou quase nada, e será um bebê eternamente, para sempre dependente de nós. Muitos pais passam anos negando a patologia de seus filhos. Alguns , inclusive, negando-lhes um diagnóstico ,evitando assim os famosos “rótulos”, que nada mais são do que preconceitos, na esperança vã de que, se negarem palavras como síndrome de Down, deficiência Intelectual e Paralisia Mental, a criança, em alguma fórmula mágica irá se curar e tornar-se como as demais.

Muitos especialistas compartilham esta visão utópica, evitando ao máximo diagnosticar a criança, como se os pais não pudessem suportar, e poupando a eles e a criança do diagnóstico, aumentasse drasticamente suas chances de desenvolvimento.

Tanto a forma de ver a criança com Necessidades Especiais como uma criança deficiente em sua totalidade, e portanto, para sempre dependente, assim como a forma de se posicionar de que a criança nada tem, e quem sabe, ”tem apenas um desenvolvimento lento”, criando expectativas traumáticas para os pais confusos, são preconceitos, e devem ser combatidos.

Assim como nada é absoluto, as necessidades especiais conferem características muito especiais aos seus portadores. Eu tenho uma dificuldade geral de me localizar espacialmente, vivo esbarrando nos móveis em minha casa e levando tombos espetaculares, às vezes na rua, diante de todos. Isso, associado a outros problemas de saúde , acaba resultando numa desorganização que enlouquece meus familiares. Contudo, desenvolvi uma memória fotográfica ímpar, e quando preciso de algo, sei exatamente em que local se encontra, descrevendo a localização do objeto desejado mais ou menos assim :”embaixo do terceiro volume da segunda pilha de livros ,à direita da gaveta da Cômoda”. Certamente, que ninguém consegue localizar o objeto pedido. Calmamente vou lá, e o retiro, exatamente na posição em que descrevi.

Lorena, com sua forma descritiva e literal de enxergar o mundo, discutindo o óbvio sempre, faz colocações que causarem em mim profundas mudanças na minha forma de ver o mundo, isto é, meus pré-conceitos, ou melhor dizendo, preconceitos. Durante uma de suas conversas ela falou assim: ”Mãe, menina pode gostar de rosa? ” ..Eu ,sem entender o porquê da pergunta disparatada, perguntei o motivo. Ela me respondeu :”Eu gosto muito de rosa. E de Barbie”- e continuou a falar-:”O que você quer que eu seja quando crescer?”

Diante de tantos questionamentos, dei-me conta de que, na esperança de mantê-la o mais longe possível de esteriótipos, estava na verdade, os reforçando: minha filha sonhava com a boneca Barbie, bailarina, e queria ter roupas rosas, muitas.. Os preconceitos eram meus, não dela. E ela sequer se importava com isso. Respondi que sim, que tudo bem ela gostar de rosa, e de azul e de Barbie... e quanto ao que ela ia ser quando crescesse, que ela poderia ser o que quisesse, desde que a fizesse feliz.

Aprendemos todos os dias, com nossos filhos, especiais ou não, eles também tem muito a nos ensinar. Pense nisso, e em todo o potencial que cada um deles tem para se tornar uma pessoa especial, única e digna. Sem preconceitos que o impeçam de ir longe. E ainda mais além.

Escrito por Michelle Paranhos
Este texto foi originalmente escrito para minha coluna  em  http://www.acd-tv.org/colunamichellelouise.html Confira este e outros textos meus toda segunda-feira!

Comentários

  1. Muito bacana saber mais sobre a história o Brasil ter um relato em formato de livro com poemas, cartas e outros escritos. Valorizamos tão pouco nossa cultura, bacana falar sobre um livro assim.

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