[Resenha] A Cidade Sitiada de Clarice Lispector


Livro: ACidade Sitiada 
Autora: Clarice Lispector
Número de Páginas:138
 
Dia 10 de Dezembro deste ano Clarice Lispector teria feito 98 anos  se ainda estivesse entre nós.
 Nascida em 10 de Dezembro de 1920,  nos deixou apenas um dia antes de completar (apenas) 57 anos, no dia 9 de Dezembro de 1977.
Portanto, essa resenha é uma homenagem para essa autora Brasileira de coração que revolucionou a escrita e foi imortalizada através das inúmeras reedições de seus livros, análises detalhadas dos mais renomados críticos servindo, até hoje, de inspiração para nós, escritores ainda em formação. 


     Bem- vindos à A Cidade Sitiada de Clarice Lispector- este que foi o primeiro livro que li desta autora e que agora reli, muitos anos depois, para elaborar esta resenha.

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"A população acorrera para celebrar o subúrbio e seu santo, e no escuro o pátio da igreja resplandecia. Misturando-se à pólvora queimada a groselha erguia os rostos em náusea e ofuscamento. As caras ora apareciam, ora desapareciam.
 Lucrécia achou-se tão perto de uma face que esta lhe riu.
 Era difícil perceber que ria para alguém perdido na sombra. Também a moça fingiu falar com Felipe, olhando porém um desconhecido nos olhos que a claridade de um poste enchia: que noite! disse ela para o estranho, e as duas caras hesitaram: o carrossel iluminava o ar em giros, as luzes caíam trêmulas... 
Se houvesse alguma coisa extraordinária a suceder enfim no subúrbio, esta viria irromper no âmbito da retreta, onde crianças perdiam-se das mães e gritar seria mais um grito: o largo da igreja estava frágil. E crepitava com as castanhas na fogueira. Sonolentas, obstinadas, as pessoas se empurravam com os cotovelos até fazerem parte do círculo silencioso que se formara em torno das chamas." 

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O dilema das Capas


A capa que abre esta resenha foi a da edição que li - a 6°edição de 1982. Eu li, pela primeira vez, na versão impressa poucos anos depois do lançamento desta edição. Lembro de ter ganho como presente de aniversário de 12 anos , mas somente quase dez anos após, numa primeira releitura - das muitas que se seguiram- , alcancei  maturidade literária e porque não dizer, pessoal, que me permitisse senão compreender, ao menos tentar entender, a grande e complexa narrativa que nos brinda a autora Clarice Lispector em  A Cidade Sitiada. 



    Chamo a atenção para a edição de 2015, onde o foco da ilustração da capa está  na figura  enigmática em sua simplicidade de Lucrécia.
 No início da trama, ela e o tenente Felipe estavam nas comemorações do Dia de são Geraldo, o santo padroeiro da cidade.
É interessante essa mudança de foco nas ilustrações de capa com as sucessivas edições, muito embora tenha havido outras capas com outras ilustrações ao longo dos anos, feitas por editoras diferentes, o que justificaria, ao menos em parte, essa diferença entre as capas.

 Mas, em se tratando de Clarice, nada é assim tão óbvio.

. Esta edição a que me refiro- de 2015-, retrata bem um aspecto interessante do nosso olhar sobre a obra de Clarice. 
Se antes sua narrativa, embora desde sempre rica em metáforas e discursos indiretos, trouxesse alguma dificuldade na leitura das mesmas- em especial esta obra em questão, talvez um de seus trabalhos mais completos-, a mudança de perspectiva está naquilo que se entrega para o leitor e o fará compreender melhor o enredo.
Quando Clarice escreveu a obra, ela pretendia retratar o vazio em Lucrécia, aprisionada dentro de si mesma. 
É o próprio corpo que aprisiona a alma da protagonista; é ela que, por falta de coragem, não consegue  libertar-se.
Ainda assim, para mim, a capa de 1982, ainda que não descreva o objetivo final da autora, é muito mais contundente, visto que uma das características da  narrativa é, de fato, coisificar Lucrécia, transformando-a em mero objeto pertencente à São Geraldo. 
Lucrécia  não tem uma identidade, portanto, não merece(merecia) figurar na capa.
Entretanto , faço outro aparte, agora observando mais amíude a transformação da  nossa sociedade ao longo do tempo e daquilo que interpreta como parte importante da narrativa. 

Em 1982 o cenário ganhava a força de personagem, principal e por isso constava como parte da ilustração da capa. 
As cortinas de um teatro se abrem e vemos a cidade, que está lá fora, condensada num círculo quase perfeito, uma bola , de onde seria difícil  escapar. 
Mas as cortinas desse suposto teatro, vejam, estão soltas no ar, porque será? 
Seremos nós, os atores dessa peça ? Seremos nós, leitores,  que  representaremos para a platéia São Geraldo, descontruindo a ação dos personagens neste palco ficitício?
 Ou seria ao contrário?
  A cidade de São Geraldo  então, se tornaria a  a atriz principal , uma vilã, que aprisionaria Lucrécia assim como os demais personagens, e nos relegaria ao plano de meros espectadores, incapazes de mudar alguma coisa, tanto para ela quanto para nós mesmos.
 Estaríamos todos sitiados, imóveis, sem forças para mudar, ao aceitar nosso destino- seja ele qual fosse.

Esse dilema existencial, mais até do que a própria capa explicativa da mais nova edição, para mim, suscita muito mais curiosidades que certezas e por isso mesmo, estabelece uma relação mais estreita com o texto.. Não preciso dizer que é a minha capa preferida.


 
edição de 2015

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Descrição do livro

"A Cidade Sitiada – Em 1971, Clarice Lispector disse ao jornal Correio da Manhã que A cidade sitiada, de 1949, foi seu livro mais difícil de escrever. Talvez porque, na história de Lucrécia Neves, o talento de Clarice tenha levado à perfeição o paradoxo de desumanizar ao máximo seus personagens para torná-los visceralmente humanos. A simplória Lucrécia, de A cidade sitiada, docemente desprovida de raciocínio e/ou de consciência, é alma gêmea de Macabéa, que muitos já viram na versão cinematográfica A hora da estrela. Lucrécia é apenas o que ela vê: os cavalos a esmo na suburbana cidade natal de São Geraldo, o morro do Pasto, o armazém, o sol sem vento da tarde.

Lucrécia portanto era São Geraldo. Sua alma, suas emoções eram o tédio do subúrbio. Ela tinha um vago desejo de se casar e, por isto, passeava com o tenente Felipe, do qual gostava da farda militar, mas ele não gostava de São Geraldo, logo não gostaria de Lucrécia. Saía com Perceu Maria, que desprezava talvez por ser atônito e vazio como ela. Mas nenhum dos dois a pedia em casamento e, quando a agonia do coração de Lucrécia batia em descompasso com a modorra da cidade, ela sonhava com um baile. Um baile com música e danças seria a salvação.

Por pura catatonia, restou a Lucrécia o casamento com Mateus Correia, comerciante rico e bem mais velho, por iniciativa da mãe, Ana, à qual não oferecera entusiasmo ou resistência. Esta era a marca da relação de Lucrécia com a mãe e com o mundo: – O meu passarinho fica mais bonito na prateleira de cima da cristaleira. Vê-se muito mais, hem, menina – dizia Ana, em seu mais denso diálogo de uma tarde muda.

Mas era apenas um modo de ver; e nada mais, pensava Lucrécia, sem saber que pensava e tampouco o que era o pensamento. Às vezes tinha rasgos perceptivos que expressava em um “Mamãe, como nossa vida é triste”. A ação de Lucrécia é sitiada por algo misterioso que a faz seguir a vida “apenas vendo”. E sua história é uma colagem de contos que a autora transforma em capítulos em cronológica seqüência. Depois do casamento, Lucrécia continuou a ver diariamente o movimento do trânsito, da construção de um viaduto, das aranhas fazendo suas teias, os mosquitos. Via o marido e suas preocupações domésticas. Amava-o? Depois da morte de Mateus, Lucrécia, menos sitiada mas ainda não liberta, vai em busca de um homem de bom coração. Mas para ela o amor era difícil. Ela não o via e, portanto, não sabia o que era o amor."
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O Enredo

 A Cidade Sitiada de Clarice Lispector traz a história de Lucrecia Neves, uma jovem que mora no subúrbio de São Geraldo e que vive à procura de uma marido que a tire do tédio e da solidão, de um lugar que tem um silêncio sepulcral.

O desejo de ser rica e de sair dos limites da cidade a fazem apostar no casamento com Mateus, que a leva para morar na cidade grande. No entanto, a nostalgia do subúrbio a invade de tal forma que ela retorna a São Geraldo, agora tão diferente daquela em que vivera.


Após a morte do marido, ela fica esperando outro evento que possa mudar sua vida, talvez algum outro homem, que possa lhe tirar da solidão. A carta da mãe chamando-a para mudar-se para a fazenda dá-lhe uma nova chance de jogar-se numa aventura amorosa e na busca de si mesma.

Lucrécia é docemente desprovida de raciocínio e/ou de consciência. Ela é apenas o que ela vê: os cavalos a esmo na suburbana cidade natal de São Geraldo, o morro do Pasto, o armazém, o sol sem vento da tarde.

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A Linguagem

      As construções são complexas, recheadas de metáforas e discurso indireto.
    Cada palavra é planejada, a alteração da ordem natural nas frases e até aquilo que é suprimido revela ao leitor exatamente o que a autora pretendia dizer. 
       Como é possível ler no trecho abaixo, onde as mulheres de São Geraldo reuniram-se numa Associação concebida para o fracasso, pois que o objetivo era enaltecer o marasmo, que ainda que se deseje ardentemente o contrário, será suplantado pelo progresso.
       Durante o dia e o cantar dos hinos as paricipantes dessa Associação Feminina se prestarão a manter a farsa mas, à noite, com a chegada dos sonhos, tudo com o que almejam é deixar a Cidade.
    
"Foi nessa época de brisa e indecisão, nesse momento de cidade ainda mal erguida, quando o vento é presságio e o luar horroriza pelo seu sinal – foi no descampado desta nova era que nasceu e morreu a Associação de Juventude Feminina de S. Geraldo. De início votado à caridade, o grupo – fustigado pelos motores da usina, interrompido pelo tráfego dos cavalos e pelos súbitos apitos das fábricas – passou inesperadamente a ter seu próprio hino, e numa reviravolta que assustou mesmo as sócias – seu fim era agora o de enobrecer as coisas belas. A Associação teria talvez ficado na organização de tômbolas e recreios se não fosse Cristina que acendia um fogo vazio e destinado ao vazio, onde se consumiriam as sócias em nome da alma que deve progredir. Aos poucos as jovens se reuniam com um ardor na verdade já sem causa. À tarde viam-se entrar na casa da reunião grupos apressados de moças pequenas, com quadris baixos e cabelos compridos, tipo feminino daquela zona. Em nome de uma esperança já assustadora incitavam-se e manifestavam-se no hino que falava com violência mal contida da alegria das flores, do domingo e do bem. Elas tinham medo da cidade que nascia. No domingo cantado elas costuravam, ao meio-dia interrompendo-se sufocadas, passando a mão pelos lábios que um buço escurecia; deitavam-se cedo. E na grande noite de S. Geraldo sucedia enfim alguma coisa cujo sentido confuso e empoeirado elas em vão tentavam de dia cantar com bocas abertas. Escutando no sono, remexendo-se, chamadas e sem poder ir, perturbadas pela importância insubstituível que tem cada coisa e cada ser numa cidade que nasce"

            O vocabulário não chega a ser rebuscado, ainda que use expressões que à epoca eram bem conhecidas - como "em mangas de camisa" que significa à vontade, sem o uso de terno, vestimenta quase obrigatória décadas atrás.
         Ou seja, para a época que foi publicado , atrevo-me a dizer que a linguagem de A Cidade Sitiada seria até coloquial. 
         Contudo, ao passar dos anos, tanto o estilo de narrativa mais lento- que requer uma leitura com maior atenção para aperceber-se do real significado das figuras de linguagem empregadas,caiu em desuso-, assim como ocorreu com a expressão " Em mangas de camisa".
         À propósito, tenho uma história curiosa com essa expressão " em mangas de camisa".
         Fiz um trocadilho certa vez em um dos livros de minha autoria com essa expressão, ao dizer que um personagem- um estudante de direito na década de 2000 , época em se passava a trama-, iria ficar em mangas de camisa  se ousasse  lutar pelo direito de se vestir em mangas de camisa. 
       Outro sentido da expressão em mangas de camisa é "entrar em confusão", e se já é complicado entender a utilização de  um único sentido de uma expressão em desuso , quem dirá usar de dois sentidos diferentes numa mesma frase.
       E onde foi que eu ouvi tal expressão pela primeira vez e sem preceber incorporei-a ao meu vocabulário?
      Acertou quem disse que aprendi com ela- a autora Clarice Lispector.
      Pelos idos de 1970, a literatura em geral assim como o emprego do vocabulário, tinham outros propósitos: transmitir conhecimentos,  fazer refletir e dentre outros aspectos, servir como meio para ampliar o vocabulário do leitor, apresentando-lhe palavras novas.
       O autor não entregava a mensagem "mastigada" para o leitor, ao contrário.
      A Literatura era , então, uma arte e como tal, a função era falar do artista para o espectador.
      Cabia a nós, leitores, adentrar neste universo criado pelo autor e nos encantar com as maravilhosas descobertas.

                                                                            ❤❤❤
                     

                                           A Autora Clarice Lispector

CLARICE LISPECTOR nasceu em Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, e chegou ao Brasil ainda criança de colo, naturalizando-se brasileira assim que atingiu a maioridade. Criou-se em Maceió e Recife, mudando-se aos 12 anos para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, trabalhou como jornalista e iniciou sua carreira literária. Viveu muitos anos no exterior, acompanhando seu marido, diplomata brasileiro, com quem teve dois filhos. Faleceu em dezembro de 1977, no Rio de Janeiro



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                                                         ❤ Até a próxima!❤





Comentários

  1. Sou adorador da Clarice Lispector 😍
    Ontem estava debatendo com os meus colegas de trabalho sobre ela, e acabei recomendo a cidade sitiada e hoje estou vendo seu post 😍

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    1. Que bom Lucas Alves! Também gosto muito de Clarice e esse livro, em especial, me acompanhou ao longo dos anos e, em cada uma da releituras, encontrei uma mensagem diferente. Um livro incrível, escrito por uma autora igualmente incrível!

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  2. Eu sou fã dela, eu já até apresentei um texto dela como monologo numa peça. Acho ela maravilhosa, tenho alguns livros dela em casa, mas esse em especifico nunca li, adorei a resenha e vou procurar pra ler <3

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  3. Oi Michelle!!
    Nossa, Clarisse é uma diva e uma inspiração para muitos autores brasileiros.
    Sobre Cidade Sitiada, eu nunca li, mas achei a edição de 2015 muito linda e delicada. A história já está sendo vendida naquela capa.
    Ótima resenha e maravilhosa homenagem!!
    Bjs
    almde50tons.wordpress.com

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  4. Acredita que nunca li nada da Clarisse? Acho que é uma boa oportunidade para incluir na lista de 2019. Gostei da resenha que fizeste.

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  5. Quero muito começar a ler obras da Clarice Lispector, ela é simplesmente uma lenda na literatura <3

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  6. Olá nunca li nada da Clarice e estou bem interessada em alguns livros dela só não sei por onde começar ainda mais anotei os livros

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  7. Olá, tudo bem? Que resenha mais completa, parabéns! Sobre Clarice, apesar de ter que ler muito dela na universidade, infelizmente nao consigo me conectar de modo algum, acho sua escrita e suas figuras de linguagem bastante confusas.

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  8. Que resenha maravilhosa e que linda homenagem. Nunca li nenhum livro da Clarice, mas vou ter que mudar isso. Depois de ler sua resenha fiquei apaixonada pela sua obra.
    Obrigada pela partilha 💖

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  9. Oi, tudo bem?
    Amei a resenha! Ainda não me aventurei para ler Clarice, mas tenho muita curiosidade, sempre leio grandes elogios a obra e pretendo me lançar nas leituras em breve.

    beijos,

    Rafa - Fascinada por Histórias

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  10. Olá.

    Não conhecia a primeira capa deste livro. Fiquei feliz em saber um pouco mais sobre ele. Ainda não li nada da autora, mas me chamou atenção :D

    Beijos,
    www.psamoleitura.com

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  11. Adoro a Clarice e sua escrita, mas ainda não li esse livro, então amei ler a sua opinião sobre ele!

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